sábado, 13 de novembro de 2010

Artigo

“RockAntygona" é um espetáculo
híbrido, corajoso, ali entre o litúrgico
e o profano



Adaptada da obra de Sófocles, a peça consegue o improvável, é uma legítima tragédia grega, mesmo sem ser uma legítima tragédia grega.
O diretor Guilherme Leme vai direto ao ponto, contando com a aquiescência do espectador opta por contar a história de Antígona de forma reduzida. Numa opção radical, a direção deixa em cena apenas três personagens do enredo (além do narrador e DJ). Com essa escolha arriscada a peça ganha em ritmo e densidade, além de não cansar o espectador. A História de Antígona é bastante conhecida e é contada numa espécie de prólogo pelo narrador: Antígona é filha de Édipo (homem que teve um relacionamento com a própria mãe e ao descobrir isso mata o pai e fura os dois olhos). Seus dois irmãos Etéocles e Polinices herdam o reino após a morte do pai e combinam de se revezarem no poder, mas Eteócles após o primeiro ano não cede o trono a Polinices. Este se muda para Argos (cidade inimiga) e obtém o apoio do Rei de lá para fazer com que Eteócles lhe entregue o reinado. Após uma briga, os dois irmãos são mortos um pelo outro. Creonte, irmão de Édipo, assume o poder e determina que Polinices não tenha direito a ser enterrado, pois lutou contra a cidade de Tebas e que Etéocles seja sepultado com toda pompa e circunstância. Antígona desobedece à lei e enterra o irmão e é condenada a morte mesmo sob os fortes protestos do filho de Creonte.

Centrando fogo somente nesses três personagens a trama é um concentrado poderoso da tragédia de Sófocles.
É uma peça adulta, sem nenhum tipo de maneirismo para agradar o público. Muito pelo contrário, é uma peça provocativa, tanto pela linguagem utilizada pela direção quanto pelo tema atualíssimo.
Utilizando-se de técnicas expressionistas, brechitianas e pós-dramáticas, o espetáculo “RockAntygona” é totalmente iconoclasta.
Absolutamente tudo o que está em cena tem algo a comunicar:

-  A iluminação de  Tomás Ribas é simplesmente um deslumbre, praticamente a peça inteira se desenvolve em núcleos muito bem determinados, ideia reforçada pela utilização de equipamentos de luz (elipsoidal) que só foca o que interessa à cena naquele momento deixando todo o resto escuro.

- O cenário é simples e é composto por um tortuoso caminho de pedras, uma mesa enorme, uma cadeira de escritório e várias persianas. Apenas o essencial, nada falta, nada sobra.
- Os figurinos são mesclados. Os dos homens remetem à atualidade e possuem certa aura militar. Já o de Antígona é do passado. Uma concretização dúbia interessante.

- A trilha sonora é agressiva, pontual, indo de rifles de guitarras e tambores à música de grupos como Portishead. É a responsável pela aspecto estranho do espetáculo, tecendo ora comentários irônicos sobre a cena, ora trabalhando no clima soturno e arrebatado da montagem.
- Os atores possuem atuações equilibradas e cerebrais, mantendo o ritmo de fala e voz exigido numa boa peça trágica. Luis Mello é Creonte, o tirânico Rei de Tebas, sua atuação é madura e apaixonada. Não chega a ser uma surpresa para quem acompanha sua carreira no teatro. Larissa Bracher faz uma Antígona agoniada, tensa, ritualística. A primeira cena do espetáculo em que vemos a personagem num lamento pelo cruel destino de seus irmãos, de si mesmo e também de Tebas, é chocante. A atriz consegue transmitir toda a perturbação necessária, sem dizer uma única palavra. É uma cena arrepiante. Em certos momentos vendo Larrissa Bracher atuando, me lembrei das descrições de Bertolt Brecht sobre a atuação de sua mulher Helene Weigel. No entanto, para mim, a grande revelação desse espetáculo é Armando Babaioff, ator que eu só conhecia de seus trabalhos na televisão. Seu Hémon é o grande ponto de conflito na peça. Ele atua na tropa militar do pai, mas tenta defender Antígona dos desmandos e desvarios do pai. É um papel difícil, que exige um grande ator, que domine os meandros do poder, mas que também tenha sensibilidade ao apelo do desespero de Antígona e da população que é contra a morte dela, mas que se cala com medo das tiranias de Creonte. A cena em que o personagem Hémon entra em cena é caótica, muito bem pontuada pela excelente trilha e pela poderosa iluminação. Um elipsoidal pisca constantemente enquanto o ator se contorce inteiro. É uma cena expressionista digna de um filme de Murnau (se ele fosse vivo e estivesse ainda produzindo). É uma das cenas mais eletrizantes que já vi no teatro. Quando Babaioff entra em cena, seus gestos duros e extremamente marcados chamam a atenção. Depois da conversa com o pai, onde tenta em vão salvar a vida de Antígona, Hémon já não é mais o mesmo. Está alterado pela força das circunstâncias e é nesse momento que acontece a cena mais linda de todo o espetáculo: o ator Armando Babaioff repete todo o gestual inicial militar do inicio da cena só que agora em câmera lenta. É uma cena rápida em sua duração temporal, mas que dá a dimensão existencial do personagem. É nessa movimentação aparentemente banal que o personagem aceita o seu destino.
Aliás, o destino é a personagem principal dessa montagem, muito mais que Antígona ou Creonte ou o Rock da trilha.

Os personagens parecem ser “joguetes do destino” (citação roubada de Shakespeare), por mais que queiram brigar com o imponderável chega uma hora em que aceitam e cumprem suas sentenças de vida e morte. A peça toda é meticulosa e cerebral como uma partida de xadrez: O povo é representado pelos Peões, Creonte representa a figura do Rei, Hémon é o Bispo e Antígona é a Rainha e são seus movimentos em linha reta ou em diagonal que acabam por dar xeque-mate ao Rei. No entanto, nesse jogo de xadrez que é “RockAntygona” não há vencedor.  Ao final, as persianas tingidas de vermelho pela iluminação mostram que com o Destino não se brinca e que mesmo tantos séculos depois de escrita, essa tragédia grega ainda é tão atual, principalmente em se tratando de Brasil e sua democracia para estrangeiro ver.

Enfim, poderia escrever muito mais sobre essa maravilhosa montagem, mas fico por aqui. Não sem antes parabenizar a todos os envolvidos no 1° festival de teatro de Ribeirão Preto, especialmente o pessoal do Sesc-RP pela vinda desse espetáculo (na mais pura analogia da palavra espetáculo).
Muito obrigado!


Parabéns para todos que trouxeram essa peça. Maravilhosa.
Por Mateus Barbassa

2 comentários:

  1. Não foi possível postar fotos e comentários de todos os espetáculos? Gostaria de ver um comentário sobre o nosso que aconteceu dia 15 (Mulheres da Silva). Obrigada. Márcia Santana.

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